Chega-me uma claridade baça, ainda vaga, à saída principal; desconfio, mas aceito o pressentimento de um tempo melhor. Abre-se nessa fracção tempo um espaço igualmente curto, e sei que é precioso. Nele cabe o tanto quanto acordar em dia de aniversário infantil. Há um entusiasmo, uma emoção volátil, incontida. Reconheço-a: é a renovada promessa da Primavera que o final do primeiro dos meses traz. Graças a Deus que ainda dou por ela.
Quatro Caminhos
terça-feira, 30 de janeiro de 2024
quinta-feira, 8 de junho de 2023
Lisboa, Caminho dos Flamingos
São duas e um quarto, regressamos do almoço sem grandes pressas. Indisfarçavelmente cansadas, cansados. Abrimos a porta, entramos, pastoreamos os que estão; eles sentam-se.
Pressente-se o que vem a seguir. Dizemos o que há a dizer e pronto - acabou-se. Vê-se nas suas expressões: há uma perplexidade inédita, uma ressaca esquisita. Súbita. Hesitam. Porque reagem só agora? Sabiam que estávamos a acabar.
Este foi um ano estupidamente encarneirado, caraças. Tão picado nas pequenas coisas. Será que os miúdos têm essa noção? Pensarão em nós? Nas senhoras da cantina? Nos vigilantes do corredor? Será que comparam este ano com o anterior? Um ano e um mês depois de caírem as máscaras, lembrar-se-ão? Passarão anos sem que saibamos, se bem calhar.
Os tímidos e os difíceis são os que vêm por um abraço (ou um high-five embaraçado). Os outros não. Estamos todos pegajosos. Uns vêm atrasados da bola, outros pedem que se ligue o ventilador. Professora, se ela sabia que se ia embora, porque é que ficou mais minha amiga? Até depois! Até para a semana. Ainda nos vemos, não é? Há as aulas de preparação das provas. Ainda nos vemos, não é?
É, pois.
Ainda nos vemos.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2022
Lisboa, Via do Oriente
Dois meses. Não sabia já o que esperara, para ser sincera. Elogios? Interrogações? Não sabia mesmo. Sentira tanta curiosidade sobre o que poderia acontecer. Algo, um sinal qualquer. Comentários, uma ou outra palavra.
E nada.
Nada.
Ao cabo de nove semanas, apagou o giz líquido de uma assentada, em hora de ninguém dar por isso. Em final de dia corou, embaraçada pela pretensão. Porque haveriam de ler? De reparar? Têm mais que viver, ora.
Que faz ela? Correções, correio? Está ali sempre, sempre, sempre.
Essa ela organizava o dia. Revia o que fez, o que ouviu. Pensava no que poderia ter feito melhor. Agradecia com bastante força pequenas e importantes alegrias. Bebia chá. Sentia menos dores.
Como sempre que assim é, sentia o corpo a acordar. De fronte, rentes ao rio, as máquinas amarelas (como o giz líquido já limpo, orgulhosamente retirado) abriam o seu próprio caminho. A paisagem passou a ser outra. Cargas e descargas, rega, terraplanagem. Ali dentro, o poema apagado no vidro nascera de uma dúvida boa, em dia de tempo melhor. Que procuravam os miúdos? Que faziam monte acima? Teriam saltado o muro? A resposta possível, chamada "Fila Indiana", seguia assim:
Há luz
algum calor
galgam em ganga
a pequena colina
seguem
espantosamente
em fila
em flor
e há sol
e ao sol
uns dez,
dois anos depois,
deixam enfim
atrás a espera
à primeira
Primavera.
domingo, 20 de junho de 2021
Mowgli
1894 é lá longe. Madhya Pradesh também. Ainda assim - terá sido possível, mais uma vez, a sobrevida de um menino-rã?
Ajudei a criar alguns miúdos e miúdas lendo o essencial no Livro da Natureza. Eu e tantos outros, vestidos da mesma maneira. Investidos de igual modo. Stephe pediu a Kipling a bênção, e ele lá deu. A nós coube brincar com eles mais de cem anos depois, com o descuido possível. Meus Deus. Estradas, machados, serras, tempestades, índios, salmonelas. Alguém nos guardou, suponho.
O espanto que havia. Chuva de repente e à cabeça, dentro do rio. Transpiração costas abaixo. Camisas a escaldar contra o alcatrão. Razias de morcegos ao rés dos cabelos. Formigas e aranhas por todo o lado, pelo chão. Pirilampos a alumiar à luz da lua. Apitos de gente cheia de medo dos javalis. Vento a trazer folhas negras, cheiro intenso a fogo ardido.
Como é possível ser frágil e andar adiante? Seguir sem parar? Sobreviver?
Não sei
mas é.
Sei de ciência
certa,
é.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2020
Lisboa, Rua da Cotovia
No outro dia aprendi uma palavra nova. Claviculário. Estávamos ainda à mesa, já jantados ou pela fruta. O nosso era aquele falar de quem não se via há meses: de início graças, trivialidades, vida de casa; depois, (pre)ocupações. A dada altura guinámos ao muito que o mundo parece estar a mudar, à fragilidade de um sistema, de qualquer sistema. E aí ele disse que não. Nem tudo é frágil. Que havia formas antigas de garantir a proteção do que é precioso. Eu fui claviculário, disse. Depositário de uma das chaves de um cofre. Explicou que lá tudo estava seguro porque uma chave não bastava para o abrir, só a par isso era possível; para mais, as cifras eram guardadas em local desconhecido. Nunca contei isto a ninguém, rematou.
Demorei dias a perceber o que esta palavra nova tinha que ver connosco. Só a entendi, só se tornou minha depois de nos rever com o vidro de permeio no parque de estacionamento e o vidro nem importar muito. Na amizade, no viver entre pessoas que verdadeiramente se entendem, as cifras estão guardadas num local desconhecido. E o que é mais valioso só se abre quando duas chaves rodam a um tempo.
domingo, 8 de novembro de 2020
O fruto no fio de prata
Agora já não chove, ainda assim os pombos mantêm-se arredados. Sem eles, podem ter vez os pardais que também ali querem ver de vida. Um dos mais pequenos faz um voo súbito, parabólico. Sobe a pique, perde a velocidade, arqueia; interrompe a descida ao pousar na mais distante das quatro figueiras. Debica um dos últimos frutos com grande rapidez, vigilante.
A água acelerou a queda das folhas, as copas estão quase despidas. A vizinhança entrevê-se outra vez. Ela suspende o correr dos cortinados. Dá um passo atrás, aquieta-se. Observa. O pardal permanece mais uns instantes. O que resta do figo está prestes a tombar. Em baixo há erva saturada, folhagem indistinta, acamada.
A luz quebra. Ela deixa-se ficar. Revê o passeio. Pouca gente, pouca música, quase nenhum barulho. Mármore, calçada, lama, alcatrão. Nuvens baixas, fios eléctricos, graffiti de fraca forma e concordante conteúdo. Recorda outras árvores, outros frutos. As landes dos sobreiros no cerro pequeno. Esperava o regresso da impressão quase física de cerco, por isso faz por rejeitá-la.
Recolhe à sala, senta-se. Inspira devagar. Figura-se mais uma vez entre os sobreiros. No chão ainda muito verde vê o pontilhado castanho das pequenas bolotas. Distante de há tantos anos não pensar nela, recorda com surpresa outra cor - prata. O fruto no fio de prata. Não recorda ao certo quem o deu, se o comprou. Recorda a parte do provérbio árabe que diz que a palavra é de prata. Vai ao quarto, abre uma das caixas de madeira. Coloca o fio ao espelho, inclinando o pescoço, evitando emaranhá-lo no cabelo.
domingo, 25 de outubro de 2020
Hibiscus sabdariffa
[Jean Théodore Descourtilz (1796-1855), Histoire naturelle des plantes usuelles des colonies françaises, anglaises, espagnoles, et portugaises, 1833.]
Hibisco, dente-de-leão, uma pequena casca de limão no final da fervura. O sabor é acidulado, forte. O limão ameniza o travo aos botões da flor encarnada. A cor da infusão leva-a ao pátio calçado a pedaços de mármore, à sombra de uma das três laranjeiras que acompanhavam o muro da casa no gaveto da aldeia. Ali-além era o sítio de brincar com as colheres, as chávenas, os pratos. Lembra-os com exactidão, tão vivos no seu rosa e verde e azul que a impressão da cor oferece sabor também. A tosse cede - acaba sempre por ceder. O mal-estar demorar-se-á um pouco mais, o costume. Um outro trago já só morno conforta-a, mesmo sem lhe dar prazer. Prazer. Assim que o evoca, estranha. Mede a distância dele a si, agora. E estremece.
domingo, 28 de junho de 2020
Massamá, Rua Dr. Francisco Ribeiro Spínola
A contar havia o que acontece longe do figurativo. Provavelmente nada de novo: a percepção de que o que vejo é projectivo, trazendo à tona sobretudo quem vê. Sem outra educação, a mais não há como chegar.
Tendido e lêvedo, o tempo distante dos meus foi inicialmente suportável com voltas a pé-posto na colina para a qual olhei tantas vezes enquanto crescia. Não é pura, não é bonita, já nem sequer é bucólica. Ainda assim, sobreviveu inalterada porque a alta e média tensão impediram o loteamento, a construção. Ali sobraram as últimas hortas e prados forrageiros que os antigos caseiros não deixaram de aproveitar. Só nesta emergência viral a vizinhança deu uso aos caminhos com sincera sem-cerimónia, em recurso.
O que vi no desenho foi o eco destes dias, da colina - verde e azul, acantos e cardos. Com o calor do fim de Maio esmaeceram as azedas, as papoilas, os pampilhos, até a soagem. Ficaram acantos e cardos. Os cardos, fortes e crespos, que em miúda ainda vi queimar entre restos de tijolo, vigas de ferro e pequenos rebolos de cimento, nas últimas fogueiras sanjoaneiras do bairro. Os acantos, inesperados no meio do mato entretanto crescido. Um aqui, um além. Nunca pensara em acantos, nunca os vira fora de um capitel coríntio, de uma sala de aula ou viagem entre ruínas do mundo greco-romano. Demorei a encontrar explicação. Também eles uma projecção, certamente semeados pela ventania dominante da banda da Quinta do Porto, lá onde o irmão-doutor de um dos últimos marechais nacionais mantinha o seu recatado jardim botânico.
Verde e azul, acantos e cardos.
sexta-feira, 13 de março de 2020
A Espanhola
sábado, 1 de fevereiro de 2020
Ferro Crómio Níquel
segunda-feira, 13 de janeiro de 2020
Lisboa, Jardim do Campo Pequeno
quinta-feira, 9 de janeiro de 2020
Lisboa, Passeio do Tejo
sexta-feira, 15 de junho de 2018
Wee Hours
Couço, Rua do Comércio
terça-feira, 21 de junho de 2016
Backlog
quinta-feira, 2 de julho de 2015
A13, Km 30
segunda-feira, 13 de abril de 2015
Wee Hours
terça-feira, 17 de fevereiro de 2015
Estremoz, Largo dos Combatentes da Grande Guerra
Pensei que seriam vésperas, mas não. O terço seguia a meio na igreja de São Francisco, à cabeça daquela cruz latina tão bem definida. Que olhos não escapariam imediatamente para a esquerda, para o volume dourado que adiante se descobre? Uma árvore de Jessé, pode-se ler. Não conhecia. Não recordava sequer Isaías, troncos, rebentos. E ali está, sinuosa e escamada ao reparar mais vagaroso.
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015
Agora
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
Vila de Rei, Rua do Capitão-Mor
segunda-feira, 8 de dezembro de 2014
Cronos, Kayros, Aeon
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
Lisboa, Rua Abranches Ferrão
quarta-feira, 12 de novembro de 2014
Wee Hours
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
Sintra, Alto do Chão Frio
domingo, 2 de novembro de 2014
Massamá, Travessa Ruy Cinatti
domingo, 19 de outubro de 2014
Metro, São Sebastião
Montemor-o-Novo, Rua da Horta das Almas
quarta-feira, 8 de outubro de 2014
Lisboa, Rua Serpa Pinto
terça-feira, 7 de outubro de 2014
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
Arquivos
domingo, 5 de outubro de 2014
Em manutenção
Logo agora que ando a aprender a perder a paciência.