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domingo, 17 de abril de 2005

O Maravilhoso Mundo da Roupa Interior – Cueca de Mulher

David Lynch gosta de fazer as suas próprias peças de mobília e decoração. Citando o próprio, de memória, numa entrevista que concedeu ao Expresso para aí há uns dois anos, "há ideias que só podem ser expressas em madeira". O mesmo se passa com a mais íntima das peças de roupa: ideias há que apenas se jogam na sua escolha. Um antropólogo-filósofo poderá, melhor que eu, esclarecer as implicações individuais/grupais da boa/má relação com o corpo que essas mesmas opções comportam - eu só cá estou para as descrever (e às suas compradoras).
Não é contemporânea nem ocidental [basta atentar em tribos melanésias, polinésias, subsaarianas, amazónicas]; até mil e oitocentos da presente Era, civilizações e séculos inteiros ignoraram a necessidade de uma peça específica de roupa que cobrisse as partes pudendas do ser humano. Nas classes populares europeias, o uso de uma espécie de calças por baixo de roupagens exteriores vulgarizou-se por finais do Antigo Regime; nas classes privilegiadas a coisa é mais antiga, vá-se lá saber porquê. O desenvolvimento têxtil-industrial, a urbanização e o higienismo de XIX levaram à afirmação e diversificação daquilo a que genericamente se chama, em português, a cueca [vocábulo nascido, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, em 1712]. Até ao advento das fibras sintéticas, a dita cueca era produzida em lã, linho e algodão, e maioritariamente manufacturada pela mulher de cada casa.
No mundo feminino contemporâneo, a versão mais arcaica deste item é ainda, entre nós, designada pelo galicismo cullotte; o que é mais espantoso, ainda há por cá quem as use. A consumidoras destes calções largos de algodão não têm, por regra, menos de setenta anos, e combinam o artigo com o soutien de cós alto [calma, o capítulo O Maravilhoso Mundo Da Roupa Interior - Soutiens não tarda...], o que acaba por surtir um efeito muito semelhante ao da espectacular cinta inteira. Ao longo do século XX assistiu-se, entre outras tendências, a uma progressiva simplificação e funcionalização do vestuário: as saias longas e rodadas foram substituídas por versões mais curtas; as camisas perderam folhos; as calças foram apropriadas pelas mulheres; os cabelos passaram a dispensar chapéus. Esta simplificação (leia-se, ajustamento ao corpo e diminuição drástica de tamanho) foi acompanhada pela indústria da roupa interior: no caso, da cullotte para a cueca alta (mais conhecida por "cueca de gola alta", igual à cullotte, mas sem meia-perna) da cueca alta para o bikini (cuja cintura fica abaixo do umbigo), do bikini para a tanga (também conhecida por "asa delta", que descobre parcialmente os quadris e glúteos), da tanga para o fio dental (um pedacito de pano e dois fios do mesmo tecido, necessariamente elásticos).
Sei de fonte segura que, no momento, as versões mais vendáveis são o bikini de algodão branco e o fio dental em lycra ultra-colorida, ultra-transparente, independentemente da idade da compradora. Estamos, é evidente, perante duas mundividências completamente antagónicas por parte do mulherio luso - absoluto conforto vs. absoluta sensualidade.

P. S.: Para o Ricardo Gross, a propósto do seu post de outro dia. Caso seja o único habitante de Lisboa que ainda não tenha ouvido esta história (que os meus amigos larga e repetidamente se encarregaram de propagar), fique sabendo que há quem bata aos pontos a incapacidade de distinguir fio dental de fio dentário. Aconteceu-me ter de atender, há coisa de um ano, uma jovem mulher em busca de uma cueca num tom específico de cor-de-rosa. O diálogo foi curto:

- E qual era o formato que desejava: tanga, bikini?

- Não, não
- esclareceu ela -, queria cueca de fio anal.

Com a sua lendária tarimba, teve a minha patroa/mãe de a atender. Eu fugi para a casa de banho com mais um inoportuno ataque de riso convulso.

1 comentário:

Cláudia [ACV] disse...

Formiga hidrogénica, tu és de casa, estás à vontade. Beijos.