a vida depois da vida / eco em museu / canção-vitória / letra empoada / melhor que nada / é memória

terça-feira, 6 de junho de 2006

Massamá, Rua Casal do Olival

O sonho foi meu, mas a recordação é dela. Das primeiras que contou entre as poucas que trazia. Mar, calor e crianças pontapeando uma bola, levantando pó. Mal falava português, quando entrou para a minha classe. Filha mais nova de comerciantes cantoneses há muito estabelecidos em Dili, emigrou para Portugal no início dos anos oitenta, com dois dos seus irmãos. Os restantes rumaram à Austrália com uma avó. Os pais, esses, não arredaram pé da loja de Timor.
No liceu tornámo-nos próximas. Com o tempo foi-me contando o quanto lhe interessava a Biologia; de como revira apenas uma vez a mãe e uma irmã, num breve encontro em Paris; que desde criança era responsável pelas tarefas domésticas; da severidade dos irmãos, acirrando, dia após dia, o seu desejo de independência; de como a língua materna era a única falada entre eles.
Os três foram chamados pelos mais velhos em 1992. Em poucas semanas, pleno segundo período, tiveram que expedir ou vender tudo o que dizia respeito à sua década portuguesa. Despedi-me dela depois da aula de Português, houve até bolo, daí a dias faria anos. Na chegada à Austrália. Estava assustada e muito triste, mal se lembrava da restante família, só da avó, que haveria de morrer não muito depois. Deixou-me algumas canetas, uma t-shirt e um bloco de folhas A4. Na contra-capa do bloco pedia-me que as gastasse, gastasse, gastasse, para que não se gastasse a nossa amizade. Assim fiz, e ela também. Primeiro muito, com o passar dos anos menos. Primeiro em português, depois nas duas línguas. Nos últimos anos já só em inglês.
Julguei ter sonhado com Dili por causa destes dias de fogo e facas, mas não. A Kim fez anos há uma semana. Só agora me lembrei.

Sem comentários: