"Um dia faltou a luz no escritório [Felix Valladas & Freitas]. O Freitas não estava e o Osório, o «grumete», tinha saído a fazer um recado. O Fernando foi buscar um candeeiro de petróleo, acendeu-o, e pô-lo em cima da minha secretária.
Um pouco antes da hora de saída atirou-me um bilhetinho para cima da secretária, que dizia: «Peço-lhe que fique». Eu fiquei, na expectativa. Nessa altura, já eu me tinha apercebido do interesse do Fernando por mim, e eu, confesso, também lhe achava uma certa graça...
Lembro-me que estava em pé, a vestir o casaco, quando ele entrou no meu gabinete. Sentou-se na minha cadeira, pousou o candeeiro que trazia na mão e, virado para mim, começou de repente a declarar-se, como Hamlet se declarou a Ofélia: «Oh, querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh! até ao último extremo, acredita!»
Fiquei perturbadíssima, como é natural, e, sem saber o que havia de dizer, acabei de vestir o casaco e despedi-me precipitadamente. O Fernando levantou-se, com o candeeiro na mão, para me acompanhar até à porta. Mas, de repente, pousou-o sobre a divisória da parede; sem eu esperar, agarrou-me pela cintura, abraçou-me e, sem dizer uma palavra, beijou-me, beijou-me, apaixonadamente como um louco.
[...]
O Fernando era uma pessoa muito especial. Toda a sua maneira de ser, de sentir, de se vestir até, era especial. Mas eu talvez não desse por isso, nessa altura, talvez porque estava apaixonada. A sua sensibilidade, a sua ternura, a sua timidez, as suas excentricidades, no fundo, encantavam-me.
Por exemplo, o Fernando era um pouco confuso, principalmente quando se apresentava como Álvaro de Campos. Dizia-me então. «- Hoje, não fui eu que vim, foi o meu amigo Álvaro de Campos»...Portava-se, nestas alturas, de uma maneira totalmente diferente. Destrambelhado, dizendo coisas sem nexo. Um dia, quando chegou ao pé de mim, disse-me: «- Trago uma incumbência, minha senhora. É a de deitar a fisionomia abjecta desse Fernando Pessoa, de cabeça para baixo num balde cheio de água.» Eu respondia-lhe «- Detesto esse Álvaro de Campos. Só gosto do Fernando Pessoa.» «Não sei porquê», respondeu-me, «olha que ele gosta muito de ti».
Raramente falava no Caeiro, no Reis ou no Soares."
Um pouco antes da hora de saída atirou-me um bilhetinho para cima da secretária, que dizia: «Peço-lhe que fique». Eu fiquei, na expectativa. Nessa altura, já eu me tinha apercebido do interesse do Fernando por mim, e eu, confesso, também lhe achava uma certa graça...
Lembro-me que estava em pé, a vestir o casaco, quando ele entrou no meu gabinete. Sentou-se na minha cadeira, pousou o candeeiro que trazia na mão e, virado para mim, começou de repente a declarar-se, como Hamlet se declarou a Ofélia: «Oh, querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh! até ao último extremo, acredita!»
Fiquei perturbadíssima, como é natural, e, sem saber o que havia de dizer, acabei de vestir o casaco e despedi-me precipitadamente. O Fernando levantou-se, com o candeeiro na mão, para me acompanhar até à porta. Mas, de repente, pousou-o sobre a divisória da parede; sem eu esperar, agarrou-me pela cintura, abraçou-me e, sem dizer uma palavra, beijou-me, beijou-me, apaixonadamente como um louco.
[...]
O Fernando era uma pessoa muito especial. Toda a sua maneira de ser, de sentir, de se vestir até, era especial. Mas eu talvez não desse por isso, nessa altura, talvez porque estava apaixonada. A sua sensibilidade, a sua ternura, a sua timidez, as suas excentricidades, no fundo, encantavam-me.
Por exemplo, o Fernando era um pouco confuso, principalmente quando se apresentava como Álvaro de Campos. Dizia-me então. «- Hoje, não fui eu que vim, foi o meu amigo Álvaro de Campos»...Portava-se, nestas alturas, de uma maneira totalmente diferente. Destrambelhado, dizendo coisas sem nexo. Um dia, quando chegou ao pé de mim, disse-me: «- Trago uma incumbência, minha senhora. É a de deitar a fisionomia abjecta desse Fernando Pessoa, de cabeça para baixo num balde cheio de água.» Eu respondia-lhe «- Detesto esse Álvaro de Campos. Só gosto do Fernando Pessoa.» «Não sei porquê», respondeu-me, «olha que ele gosta muito de ti».
Raramente falava no Caeiro, no Reis ou no Soares."
In António Quadros (Org.), Obra Em Prosa de Fernando Pessoa. Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas [3. Alguns Testemunhos de Familiares, Amigos e Contemporâneos. §De Ofélia Queirós, recolhido por Maria da Graça Queirós], Lisboa: Europa-América, 1986.
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