a vida depois da vida / eco em museu / canção-vitória / letra empoada / melhor que nada / é memória

quarta-feira, 17 de agosto de 2005

Guerras Parvas. Capítulo 1.

Todas as guerras são parvas, mas umas são mais parvas que outras.

O aparato conceptual da presente rubrica é ligeiro; tão ligeiro, que se resume ao preconceito axiomático epigrafado. Para que não restem dúvidas, à luz da recentíssima (mas já academicamente indispensável) perpectiva silly, o confronto marcial é parvo, coloquial ou etimologicamente falando. No caso que se segue, etimologicamente falando.
Atentemos, pois, na parva Guerra do Bacalhau (Cod War, ou Porskastríðin), contemporânea da bastante menos parva Guerra Fria (Cold War). Enquanto a quase totalidade do planeta Terra se afligia com a hipótese de extinção da espécie humana por obra de uma ou duas potências nucleares, a Islândia e a Inglaterra peitavam-se por causa de peixe. A disputa iniciou-se nos últimos anos do século XIX, com a aplicação da energia a vapor à propulsão de embarcações. O Atlântico Norte foi, até 1893 incontestadamente dominado pelos profissionais britânicos; nesse ano, o governo dinamarquês, soberano da Islândia e Ilhas Faroe, estabeleceu uma área exclusiva de águas territoriais, 13 milhas náuticas para lá da sua costa.

Os pescadores britânicos reclamaram, sendo apoiados pelo seu Governo à desobediência e não reconhecimento das 13 milhas islandesas. O seu estabelecimento não tinha precedente, e preocupava-se o Reino Unido com as posições futuras de vizinhas nações. Três anos mais tarde, foi firmado um acordo de utilização inglesa dos portos islandeses e de proibição ao trânsito para leste de Illunypa e Thornodesker.


Em 1899, o
Caspian Affair marcou o tom futuro de agressividade relacional entre os dois países: o arrastão Caspian pescava ilegalmente nas Ilhas Faroe, tendo sido abordado pelas autoridades locais. Fugiu e foi fogueado, chegando ao porto de Gimsby em frangalhos; na custódia dos dinamarquesesficou o seu comandante, prontamente chicoteado no mastro do navio islandês, e posteriormente preso por 30 dias. A imprensa inglesa iniciou um devir de atenção ao conflito, instando frequentemente os governantes ao envio da Armada para defesa dos súbditos pescadores.

Até ao final da muito pouco parva II Guerra Mundial, a questão da manutenção de recursos marinhos e suas zonas de actividade esteve relativamente dormente. Com o ressurgimento dos conflitos, em 1958, a imprensa tablóide forjou a expressão
Cod War, parodiando a nuclear contenda em curso. Nesse mesmo ano, o confronto assentou no facto de o Reino Unido não ter conseguido impedir que a Islândia estendesse os seus limites de pesca das 4 para 12 milhas. Então, mas mais marcadamente entre 1972 e 1973, a Islândia sustentou um único e convincente argumento: era a nação do mundo mais dependente da pesca, sendo a quase totalidade dos seus c.250 000 habitantes dedicados à actividade e suas dependentes, e não possuíndo outros recursos naturais por explorar. Estendeu então os seus limites para 50 milhas, alegando também a necessidade de controlo dos stocks de peixe. Os ingleses não intentaram em nenhum momento abdicar da zona islandesa, que não reconheciam como tal, por ser aquela que suportava o sector económico inglês congénere. Em 1973, um acordo entre as duas nações permitiu aos britânicos a entrada em certos pontos da zona islandesa, bem como um limite máximo de pescado até 130 000 toneladas/ano.

Expirado o acordo em 1975, teve início o mais encarniçado dos confrontos ocorridos. Entre Novembro desse ano e Junho de 1976, a quantidade de bacalhau pescada e a reclamação islandesa de alargamento a uma zona com 200 millhas foram novo pomo de discórdia: tiros, redes cortadas, abalroamentos, abates, multas, pesca furtiva; 6 navios e 2 arrastões da Guarda Costeira Islandesa contra 22 fragatas britânicas .


Com a ameaça islandesa de encerramento da base da Aliança Atlântica em Keflavik, imprescindível para o controlo da actividade soviética nessa zona do oceano, intervieram forças internacionais: a NATO, e os EUA em particular, favoráveis à Islândia. O Secretário Geral dos Aliados, Joseph Luns, mediou um acordo a 2 de Junho de 1976, que conferiu seis meses ao Reino Unido para frequentar a zona das 200 milhas com um total de 24 arrastões, sujeitos a patrulhamento e inspecção islandeses.


Paradoxalmente, nas Nações Unidas, os britânicos apoiavam e participavam desde 1973 nas conferências para a Lei do Mar, com vista, entre outras coisas, à constituição de Zonas Económicas Exclusivas de 200 milhas. Contudo, não consideravam que nada estivesse em vigor ou que os vinculasse, incentivando os seus pescadores às "incursões islandesas". Certo é que, após o acordo de '76 (e a instauração da Lei do Mar, em '82), c.1 500 pescadores perderam emprego e outros c.7 500 indivíduos deixaram de poder trabalhar em actividades associadas.



Depois de ler isto, perdi vontade de dizer que somos o povo europeu que mais ama o bacalhau.

Sem comentários: