a vida depois da vida / eco em museu / canção-vitória / letra empoada / melhor que nada / é memória

sexta-feira, 6 de maio de 2005

Monomanias

Os doidos andam muito de comboio. Apercebi-me quando a minha mãe me levou à Baixa para a sacramental ronda aos saldos, aos nove anos. Vínhamos de regresso, e a meio da Praça do Rossio começou a ecoar um som esquisito. Virei-me, parei e fiquei a ver correr rumo à estação um homem que ladrava em bom som e sem parar.
Tempos depois, houve a velha do galãozinho. Todos os dias lá corria ela as carruagens a agarrar-se aos braços das senhoras, exigindo a sua moeda ("dá! dá para o galãozinho!"). Era de então o rapaz que morava no Cacém e se embalava cada vez que o comboio iniciava marcha. Sentado na ponta do banco, parecia um pica-pau: oscilava para cima e para baixo, primeiro devagar, depois mais e mais depressa, até suar em bica. Mais que uma vez o vi dar cabeçadas nos recheios dos decotes de jovens mulheres, que se levantavam coradas e fingiam sair na estação seguinte.
Só há umas semanas percebi que o africano alto vestido de soldado não se encontra permanentemente constipado. Simplesmente tem de espirrar sobre os outros passageiros. Espirra para todo lado, de poucos em poucos segundos, mais ou menos como se fosse um aspersor de relva. Tem por alvo preferencial quem vai distraído ou ignora a sua passagem. Desce na minha estação e segue não sei para onde, anunciando em altos gritos o fim do mundo.

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