O auricular de telemóvel foi criado por um homem vingativo. Vingativo, mas bem-humorado. O indivíduo foi certamente alvo da incompreensão do meu género, nessa modalidade clássica que é a descompostura em praça pública. Espanto-me sempre que vejo uma mulher a gritar com um homem no meio da rua; não com a cena, claro, mas com o facto de a [muito ou nada] vítima optar quase sempre por fazer de conta que não ouve, ou por baixar a cabeça, submissa. Exemplos recentes: Ao meio-dia de outro dia, em Santarém, uma mulher de metro e meio perseguia um homem que ia – depressinha – Rua Guilherme de Azevedo acima, vocalizando o seguinte mantra: “Seu Fáxista! Fáxista! Dás o dinheiro tod’à outra! Aquilo é qu’é uma esposa, é? Seu Fáxista!”; dois dias depois, eu e outros sessenta suburbanos (lotação aproximada de uma carruagem do comboio Areeiro-Sintra em hora de ponta) ouvimos vinte minutos de discussão entre uma passageira fora de si e o seu telemóvel, ao qual chamava “Ricardo”, e de quem reclamava o depósito de uma quantia considerável de dinheiro - "Não pode ser, Ricardo! Estava a usar o Visa numa loja! Que vergonha!”-. Se é esquisito ouvir uma mulher aos berros com um homem ao vivo ou com o telefone que tem na mão, é mais esquisito ouvir uma mulher aos berros com o ar. Está bem, está lá o fiozinho do auricular (também há fiozinhos pretos nos filmes antigos, haja suspension of disbelief…), mas a pessoa está a falar sozinha. Para a atmosfera, para o vazio, a gesticular com um olhar esbugalhado. A metáfora do inventor passivo-agressivo funciona, ou pelo menos funcionou hoje. Numa superfície comercial, ao som de bossa-nova. No meio do corredor, uma rapariga de aparência sadia esgoelava-se para o boneco que não estava lá.
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