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terça-feira, 26 de abril de 2005

A Pioneira

Enquanto não me chego à frente para cumprir o devido, nada como prosa de mulher sem medo. Cá vai alho:

"Boas

Estou, neste momento, a reunir os meus textos em prosa num volume que se vai chamar “Prosas rosas” e que será publicado pelo Vítor Silva Tavares, o editor da casa & etc. Isto, se o Vítor Silva Tavares gostar do que ler, se eu não mudar de ideias e se Deus quiser. Não dou esta notícia com o intuito de vos levar, à má fé, a comprar o meu livro e aumentar assim a minha conta bancária. Escrever e publicar é o meu trabalho e é, para mim, uma questão de seriedade e de generosidade. Esforço-me por dizer coisas simples e complexas em frases gramaticais e poéticas. Isto não é blasfémia nenhuma, mas a multiplicação dos meus textos é para mim uma multiplicação de pães e de peixes. Tenho uma maneira aparentemente não muito católica, não muito ortodoxa, de ser cristã. Mas, contra ventos e marés, contra mim mesma, sei e sinto que sou cristã (cristã e católica). E que ser cristã é o meu fundamento (o alicerce, a raiz, o cerne).

Desconfio dos textos bonitos, dos textos boneco. O “Novo Testamento” é, para mim, um feixe de textos necessários, urgentes, capitais, radicais, rasos. Leiam, se não acreditam, o Evangelho segundo S. Marcos. Leiam também o magnífico conto de Jorge Luís Borges “O Evangelho segundo S. Marcos”, incluído no livro de contos “O relatório de Brodie” (título original “El informe de Brodie”). Vale a pena ler este texto de Borges no original, em espanhol. Leiam também esse texto-chave, capital para a compreensão de Fernando Pessoa, o poema do heterónimo Álvaro de Campos, cujo primeiro verso é “Ali não havia electricidade”. Neste poema, electricidade rima com caridade. Podem encontrar este poema no livro “Poemas de Álvaro de Campos”, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1992 (edição de Cleonice Berardinelli).

O texto que vão ler a seguir foi escrito por mim a pedido da pintora Amélia Assis. Este meu texto foi policopiado e distribuído na Livraria Ler Devagar (esta livraria fica em Lisboa, no Bairro Alto, na Rua de S. Boaventura 115-119). Como quase todos os meus textos em prosa é um mosaico. Preocupa-me ser precisa, exacta, falar verdade e estar viva.

A Amélia Assis nasceu em Lisboa em 1955. Trabalhou como assistente de bordo, trabalho que abandonou por razões de saúde. Frequentou cursos de pintura na escola ARCO e na Syracuse University em Nova York. Colaborou, como aderecista, na peça “A mulher das tristíssimas figuras”do Grupo de Teatro Joana. A exposição na Livraria Ler Devagar, em 2001, chamou-se “My name is woman”.

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Não, as mulheres não são boas. Essas grossas serpentes da América do Sul. Esses grossos compridos farfalhudos cachecóis. Paris troca de roupa. Escrevo este texto para a Amélia Assis usar na exposição dela na Livraria Ler Devagar em troca do quadro dela chamado “barbie buço brinco” que conto usar em minha casa.

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A doce carícia de F. transforma-se em agressão depois da carta maldosa de F. O passado é feito pelo presente. E todo o presente está envenenado. E todo o veneno é remédio, é contra-veneno. A carta maldosa de F. é anulada pela posterior carta doce de F. A doce carícia de F. é a doce carícia de F. outra vez. Até quando? Atrás do presente (à frente) há mais presente. Sempre. Sempre. O fel é mel para Jesus na cruz. O mel é fel para a freira gorda que come mel demais, colheres atrás de colheres, e assim peca por gula e engorda. Espelho meu. Não consigo fazer dieta.

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Ladies first: Julieta e Romeu, Isolda e Tristão, Hermenêutica e Mal-estar, Virgínia e Paulo. Eva e Eva. Nunca fui boa aluna a Inglês. Mas o Inglês tem coisas maravilhosas, claro, tão maravilhosas como o Francês em que o mar (la mer) e a mãe (la mère) se dizem da mesma maneira. Em Inglês, o mundo (world) e a palavra (word) distinguem-se, escritos, por uma única letra. Deus (God) é um anagrama de cão (dog). J. L. Borges pode resumir-se nisto. Uma capicua ao espelho. O W inicial é feminino. Woman (mulher), Wife( mulher, no sentido de esposa), Water (água), Warm (quente), Wool (lã), Wood (madeira)Womb (útero), Woo (pedir em casamento), Wedding (casamento), Witch (bruxa)… A Amélia Assis usa o O (de osga, de ovo, de ovário, de orgasmo, de Oh!, de ó-ó, de zero). E usa a silhueta da mulher dos anos 60 (a mulher de saias, o símbolo do sexo feminino para o WC público). É a hospedeira, o tailleur Chanel, Jackie Kennedy. A capa dos blocos de papel de avião que a minha avó Zé usava para escrever cartas à Prima Regina do Brasil tinha uma hospedeira assim.

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À ida para o atelier da Amélia Assis, algures em Agosto ou Julho, vejo uma ratazana esborrachada, calcada, passada a ferro por sucessivos carros. Vejo que é uma ratazana e não um gato por causa da cauda. Ao voltar do Atelier da Amélia Assis, dia 11 de Setembro, pelas 14h30, enquanto dois aviões furavam o World Trade Center, em Nova York, vejo uma osga esborrachada, espalmada, (e as osgas, por natureza, já são espalmadas), enfarinhada pelo pó do chão, da rua, como um croquete pronto para ser frito. Ratazana e osga faziam a sua vidinha nas ruas torcidas, retorcidas, de ferro forjado, da velha Lisboa. E a cidade de lata, de teatro, outonece. Mas isto já são Belas Letras.

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O Príncipe dá um beijo tão forte na boca da Bela Adormecida que lhe arranca um bocado da boca. A Bela Adormecida fica tão contente por ser acordada pelo Príncipe que lhe dá um abraço tão apertado que o estrangula e se estrangula.

A Branca de Neve, a Bela Adormecida e a Gata Borralheira tomam as três juntas banho na mesma tina de zinco cheia de água morna e sais de banho. Estranho banho, dirão. Ainda mais estranho se pensarem que as três vão ficar lá até derreterem completamente como três cubos de açúcar em café ou chá."

Adília Lopes, PÚBLICO, 7 de Abril de 2002 [in Arlindo Correia]

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