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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2005

Passageiros

O comboio é o único sítio onde se pode olhar e ser olhado sem embaraços de maior. Meter conversa não é para todos, mas os menos tímidos fazem-no sem dificuldade; a dita surge sempre a propósito de um pormenor, normalmente associado a um acto de cortesia ou auxílio, e daí segue. No caso de uns, a intenção esgota-se na mera converseta, noutros, a expectativa, plástica, ajusta-se à reacção do interlocutor. O passageiro frequente é muito dado a esta. Na viagem grande a melhor carruagem é a que está antes ou depois do bar, antes ou depois da casa de banho. É aí que mais gente circula, porque manter-se sentado muitas horas é, para quase todos, um sofrimento.
Nas linhas suburbanas acontece o exacto oposto, e é ver a precipitação instintiva com que são ocupados todos os lugares disponíveis. Os comboios curtos são tão interessantes quanto os mais: todos os passageiros estão ali por pouco tempo, com ar de se vou sair a seguir, o que é que tenho a perder? Os que se sentam todos os dias à mesma hora, sempre na mesma carruagem, orientam-se face ao destino; há também os que nunca, ou quase, repetem movimentos, só quando desejam observar algum dos rotineiros. As crianças a bordo são quem provoca as mais extremas reacções. Ou a face do observador se distende em enfado ou se ilumina de contentamento; nisto não se vê meia-tinta. O sono é, também, bipolar, pois há que nunca dormem e os que escatumbeiam todo o caminho.
O viajante acompanhado é muito menos defensivo que o singular. Só se apanha a sua disposição, o seu sotaque, um bocadinho do seu feitio, quando acontece reconhecer alguém ou receber um telefonema - aí cai, num segundo, a inexpressão facial. A ausência de expressão é um clássico da defesa urbana, sobretudo utilizado pelas mulheres jovens, tendencialmente vigis, que em geral aguentam mal a pressão do olhar alheio, passam na coxia de os olhos baixos, ombros pesados e passo apertadinho.
Fixa-se a paisagem exterior pelo desejo ou reflexo involuntário de alheamento. Alguns passageiros chegam a perder a sua estação, sem-querer e de propósito, mas não simplesmente como se adormecessem.

O fim da viagem é quase sempre um alívio; uma vez por outra é cedo demais.

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